O Cego Que Viu
Autor: Aguinaldo Morais Valença
Publicado dia 22 de Fevereiro de 2004

O Cego Que Viu

Com a finalidade de visitar os parentes e tratar de algum negócio, o qual não me recordo até por falta de interesse, viajei com meu pai, da cidade de Sertânia à São Bento do Una, cidades do interior de Pernambuco, distantes entre si aproximadamente uns 150 km.

Na véspera da viagem, como medida de economizarmos o que não tínhamos, minha mãe guisou uma galinha, lambuzou-a em farinha de mandioca, colocou-a em uma lata de biscoito da sua pequena coleção, amarrou-a com um pano de prato e nos obrigou a levá-la para saciarmos a fome durante o trajeto que levava todo o dia, em um trem que vinha do alto sertão, puxado por uma Maria Fumaça. Quando descemos na cidade de Belo Jardim para pegarmos outro transporte, (coisa difícil naquela época), sentíamos o enfado, conseqüente do desconforto causado pelo ripados dos bancos da segunda classe do vagão do trem.

A poeira levantada pelo movimento dos carros encheu-nos os olhos, as narinas e os ouvidos de uma terra fina que prejudicou todos os nossos sentidos, inclusive o olfato. Por falar em olfato, lembrei-me do Cego. Não o que me acompanhava. Este sempre esteve presente em minhas lembranças. Este era o meu pai. O outro. O que via. Pois é. Era um cego que via.

Ao chegarmos à cidade de Pesqueira, parada obrigatória do trem, a estação estava repleta de vendedores ambulantes com seus tabuleiros de cocadas, cachos de pitomba, água barrenta em quartinhas de barro sendo vendida por caneco de alumínio de uso coletivo, bolo de mandioca, manga pelim (figo da índia) rolete de cana caiana, tinha até maçã Argentina. De tudo se oferecia aos passageiros. Aquela altura, desfigurados pelo pó no rosto ou pelo enjôo característico de quem não tem prática em viajar. Pareciam Papangus.

Logo que o trem deu saída, entraram em nosso vagão, o cego que via e o seu guia. Ao vê-los, embora fizesse algum tempo, tive a certeza que os conhecia. Eles faziam ponto aos sábados, em São Bento do Una, no oitão do mercado municipal, próximo à bodega do Sr. Moisés. Iniciaram a sua cantilena, pedindo uma esmola para um pobre cego que não pode ver a luz do dia...Alguém lhe deu uma nota, ele passou-a pelo nariz e disse o seu valor. Recebeu outra, e repetiu a façanha.

Eu, aquela altura, criança e ainda por cima, matuto, fiquei deslumbrado com a inteligência e astúcia do cego. Não ocorrendo o mesmo com um cidadão, muito bem vestido que ocupava um banco na outra fileira. Parecia uma autoridade. Tinha muito pantim de ser. Levantou-se calmamente, chegou perto do cego, tirou do bolso um lenço e um maço de dinheiros o desafiou: Vou colocar uma venda nos seus olhos e lhe dar uma nota qualquer. Caso você seja capaz de adivinhar o seu valor, ficará com ela. Do contrário, irá devolver todo o dinheiro que recebeu das pessoas neste trem, pois, não acredito nos seus poderes sobrenaturais. O cego relutou bastante, sempre com o apoio do seu guia, alegando que se lhe vendasse os olhos, inibiria o aguço do seu olfato e ele não seria capaz de adivinhar os valores das notas, corretamente. Discussão formou-se, juntou gente que havia dado esmola, quem não tinha, polícia... o certo é que chegamos em Belo Jardim, onde teríamos que desembarcar, sem conhecer o desfecho da contenda. Não sabemos se o cego devolveu o dinheiro, se foi preso, se o homem era realmente autoridade, nada. Nunca mais vimos o cego. Já deve ter morrido. Que pena!

Vale ressaltar que dada a nossa matutice, com vergonha da censura dos nossos companheiros de viagem, de chamar-nos farofeiros (ainda na existia o termo), só o termo, deixamos de saborear a galinha que chegou cheirando mal e teve que ser jogada fora.
Restou-nos, portanto, as seguintes obrigações: Manter o segredo e devolver a lata intacta à sua colecionadora, para ser utilizada com um novo preparado, numa próxima viagem.

Aguinaldo Morais Valença - Rio, 20.02.2004


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