História de São Bento
Contada por
Gilvan Lemos
A cidade de São Bento do Una fica no Estado de Pernambuco,
precisamente no agreste meridional, a 215 quilômetros do Recife. Seu início
data do começo do Século XIX. Contavam-nos, na escola, que por ocasião
das "derrubadas" era tamanha a quantidade de cobras que saíam da mata
que o povo, atemorizado, apelava aos gritos: Valei-nos, Senhor São bento!
Daí o seu batismo.
Na década de 40, as autoridades constituídas
verificaram que havia uma infinidade de municípios com essa denominação
pelo Brasil afora. Para distinguir o nosso dos demais acrescentaram-lhe
o Una, que é o rio que corta a cidade. Seus povoadores eram principalmente
portugueses, vindos, quase todos, não diretamente de Portugal mas da Paraíba,
da região do Rio do Peixe. Almeida, Soares, Moraes, Oliveira, Manso, Siqueira,
Cintra, muitos outros, entre os quais os Velozo, que por serem da cidade
portuguesa de Braga passaram a assinar-se Braga, assim como os Rodrigues
da Cunha, oriundos de Valença, no Minho, que trocaram o sobrenome para
Valença. Agricultores, pecuaristas, foi deles sem dúvida o impulso inicial
que transformou São Bento do Una, até l960, no maior produtor de leite
e produtos derivados do Estado. Hoje, com sua economia diversificada,
ainda "é o maior", no entanto, na avicultura.
São Bento do Una passou a cidade em l900,
desmembrando-se de Garanhuns. Meu pai, então com l0 anos de idade, lembrava
os festejos comemorativos, que vararam a madrugada, e até entoava uma
cantiguinha que começava assim: Oi viva a cidade nova\ vila das mercês\
cidade...
Todavia, o meu São Bento do Una é ainda
o apenas São Bento, de meados de l930, quando comecei a "tomar tento"
da minha terra, dos seus acontecimentos, de suas agruras, suas glórias,
suas independências, seus revides aos governos estaduais, que desde aquela
época nunca moveram uma palha para o seu desenvolvimento. A estrada de
ferro, marco de progresso de então, de São Caetano pulou para Belo Jardim,
deixando São Bento de lado. A revolucionária estrada de rodagem, pomposamente
conhecida por Estrada Contra a Seca, da mesma forma. Até l949, quando
saí de lá, São Bento era uma cidade esquecida, ilhada entre as mais importantes
dos arredores: Caruaru, Pesqueira e Garanhuns.
Minha vingança é que o povo da querida,
ímpar, incomparável, inesquecível cidade nunca se deixou abater, soube
sempre coser-se com suas próprias linhas. Basta dizer que em l900 havia
um clube literário em São Bento (São Bento, São Bento, São Bento: o verdadeiro
são-bentense raramente adiciona o Una), que editava um jornal. Meu pai,
ainda solteiro, era ator teatral, participante do grupo liderado por Vírgílio
Paiva (Nô) e sua mulher Mariá, os principais atores do grupo. O próprio
Nô Paiva construiu, às suas expensas, uma casa para servir exclusivamente
de teatro. Posteriormente, Getúlio Valença retornou à sua terra e engrossou
o grupo teatral, como ator e autor: as principais peças levadas à cena
eram de sua autoria (Nélson Rodrigues, lá, coitadinho, nem era citado).
Houve até um caso interessante, que merece um parêntese: Certo diretor
de circo ambulante pediu emprestado uma das peças de Getúlio Valença e
nunca a devolveu. Como Getúlio não possuía cópia, essa peça deve ter corrido
o Brasil inteiro, com a autoria do circense desonesto. Getúlio Valença
fundou clube social (o velho União, ainda existente); prado de corrida
com arquibancadas - gerais e sociais - e a participação de cavalos de
raça-pura, gerados, criados e treinados em São Bento. Tem mais: a banda
de música Santa Cecília, iniciativa dos Siqueira (hoje centenária), compunha-se
de músicos exclusivamente da terra e tocavam principalmente dobrados da
autoria de José Manso, outro são-bentense talentoso. As valsas executadas
durante as projeções do cinema mudo? Compostas na cidade por mucisista
de nome parecido, José Amâncio (ainda hoje as assobio com lágrimas nos
olhos, de lambujem com uma pena enorme de Beethoven, Brahms, Debussy,
Chopin e outros pobres que não tiveram a ventura de nascer em São Bento).
Por isso eu disse acima que São Bento soube
coser-se com suas próprias linhas, dar estaladas bananas aos que o ignoraram
e ignoram. São Bento hoje, que é o do Una, é uma cidade próspera, com
mais de 40 mil habitantes no município e cerca de 20 da sede, de cuja
vivência jamais me afastei e da qual muito ainda tinha de contar. No entanto,
sou forçado a terminar, porque, na verdade, não agüento mais de tanta
emoção, tanto nó na goela. Vou passar uns dias sem ouvir o dobrado Lira
de Ouro, gravado em CD, lá em São Bento mesmo (a Santa Cecília, no Dia
de Reis, tocando-o, passando frente à nossa casa, Seu Quinquim e Dona
Terezinha à janela...), tampouco me arrisco a escutar mais uma vez Recordando
São Bento, marcha-rancho de Leone Valença, que começa assim: "Vejo São
Bento noutra dimensão\ Com olhos de criança carregados de emoção..." O
romance da minha autoria Espaço Terrestre é a história romanceada de São
Bento do Una.
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