Coluna 10 - O Paraíso das Fubicas
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Publicada dia 03 de Junho de 2008
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O Paraíso das Fubicas
Embora já estivéssemos no final da década de quarenta. São Bento não conseguia livrar-se das suas fubicas vinte e nove. Pouquíssimas pessoas, as consideradas ricas, possuíam carros do ano. Andar em carros novos era privilégio de poucos.
A frota são-bentense, na verdade, já com mais de vinte anos de uso, talvez por utilizar estradas tão precárias, mostrava sinais acentuados de exaustão. A maioria das fubiquinhas começava a ficar zambeta, e os seus fiéis proprietários, por conta do trabalho que lhes davam esses carrinhos, terminavam adquirindo uma grande experiência, uma tecnologia genuinamente são-bentense da mecânica do Ford 29, o que lhes garantiu prolongar a vida útil daqueles carinhos de mecânica tão simplória, mas de grande eficiência.
Os radiadores, localizados à frente dos motores, sem a mínima proteção, furavam por brincadeira, prejudicando a refrigeração da máquina. Quando isso acontecia na zona urbana do município, Ermiro Funileiro dava um jeito utilizando solda de remendar panelas, se, no entanto, o vazamento ocorresse pelas estradas, durante uma viagem, a técnica empregada seria a de Zé Pacheco, que consistia em derramas um ovo tubulação abaixo que, endurecido pelo calor do motor, interrompia o vazamento, vedando os buracos. Segundo a crendice popular, a fubica de Bastim, um Chevrolet 27, conseguia andar, inexplicadamente, sem combustível. Acreditava-se que Bastim, mesmo sem combustível, conseguia concluir viagens históricas, fazendo o seu carrinho deslizar por entre as ondulações das estradas de terra.
Outro heróico carrinho foi o de Nô Paiva. Contemporâneo do de Bastim, o Chevrolet de seu Nô marcou época em nossa cidade. Nos carnavais, exibia-se sem capota e coberto de confetes colados em toda a sua lataria. Não faltava ao “corso”.
O vinte e nove de Zé Pacheco sofreu horrores. O desgaste foi tão acentuado que peças importantes do veículo perderam a eficiência, ameaçando a estabilidade. A caixa de câmbio, de tão desgastada, não mais obedecia aos movimentos da alavanca, que somente engatava com o auxílio de três forquilhas de madeira – uma para cada marcha em frente – que eram usadas com grande habilidade pelo motorista nas trocas de marchas. Esse valente carrinho terminou seus dias nas mãos de um maníaco colecionador de carros velhos de Pesqueira, que investiu onze contos de réis no vinte e nove de Zé Pacheco.
Jamais poderia esquecer a baratinha Ford 29 de Padre João Rodrigues, que viajava bastante pelos distritos do município – capelas. Padre João, embora as estradas vicinais fossem muito precárias, costumava pisar forte no acelerador. A poeira era grande e a molecada comemorava aos gritos suas constantes e meteóricas passagens pelo centro da cidade.
Embora morresse de vergonha dos pobres veículos da minha terra, jamais pude esquecer o carinho que sempre tive por esses maravilhosos carrinhos. O de Zezé Gordo hibernava na garagem durante anos e somente aparecia para um show de aceleradas e tiros do cano de escape; o de Padre João Firmino também era bom de garagem; o cinzento da Souza Valença e o de Alceu Valença, tio-avô do cantor, era dirigido por Anito. São Bento era, posso afirmar, o paraíso dos vinte e nove.
Esses veículos de São Bento não eram coisas inanimadas, sem alma. Eram como gente: tinham apelidos, sentimentos, caprichos. Eram acariciados e, também, algumas vezes, censurados, castigados. Houve casos de agressões da parte de motoristas inconformados com maus desempenhos do carrinho. Um motorista nervoso chegou a ameaçar seu Ford 29 com uma peixeira. Mas, a grande maioria dos motoristas morria de amores pelos seus carrinhos. Eram como pessoas da família. Havia proprietário de 29 que deixava o carrinho passear sozinho na praça. Com a direção presa e a velocidade controlada pelo acelerador de mão, era comum ver-se um vinte e nove rodando em círculo no quadro da rua, sem o motorista, que aproveitava a folga para conversar na calçada, apreciando o seu 29 rodar sozinho, seguindo as marcas dos seus próprios pneus.
Com o avançar do tempo, São Bento ficou sem os seus nostálgicos carinhos. Alguns foram vendidos a colecionadores; outros, porém, nem chegaram a sair da cidade. Tiveram destino mais modesto: seus motores passaram a mover moinhos de milho e café; rodas e eixos foram parar nas charretes dos matutos; as latarias foram para as fábricas de chocalhos de Cachoeirinha. É possível que ainda hoje estejam nos pescoços das vaquinhas leiteiras da região. Destino tão nobre quanto...
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