ENTREVISTA
GILVAN LEMOS
Revista Cult, Fevereiro de 2001
O
escritor pernambucano Gilvan Lemos continua sendo um autor tão respeitado
pela crítica quanto desconhecido do grande público. Aos 72 anos, continua
avesso às entrevistas e em constante processo criativo. Segundo o próprio
autor, seu livro mais recente, Morcego cego, representa um estágio mais
aprimorado e bem definido de sua obra. Em depoimento raro e exclusivo
para a CULT, Gilvan Lemos fala da sempre complicada relação com as editoras,
da infância em São Bento do Una, da temática social em suas narrativas
e de um novo romance, ainda inédito. Morando sozinho num apartamento no
centro do Recife, sem ter nunca casado ou tido filhos, ele professa seu
autodidatismo literário, comenta a influência do amigo Osman Lins em sua
carreira e fala do seu recém-terminado romance, Vingança de desvalidos,
ainda sem editora.
Cristiano Ramos
Diogo Monteiro
Cult - Ainda que notadamente
voltada para as personagens, o foco deixando de se concentrar no ambiente,
sua obra tem sido apontada por muitos críticos como uma das últimas representantes
de uma geração neo-regionalista. O senhor concorda com essa classificação?
Gilvan Lemos - Na verdade, minha obra apresenta forte
caráter autobiográfico. Acho que esse suposto neo-regionalismovem daí.
Nasci e passei toda a adolescência em São Bento do Una, uma pequena cidade
do interior pernambucano, repleta de personagens típicas e histórias pitorescas.
Só vim para o Recife em 1949, 21 anos incompletos. Antes, havia deixado
São Bento apenas por quatro meses, em 1943, quando precisei vir para a
capital para tratar dos olhos. Eu sofria de “conjuntivite prima veril”,
doença à qual as crianças são mais suscetíveis. Inclusive, a personagem
do meu segundo livro, Jutaí Menino, sofriada mesma doença. Portanto, as
lembranças sempre foram importante fonte para minha obra. Lembranças minhas
e dos outros.
Cult - Sua formação literária
inicial aconteceu ainda em São Bento do Una?
G.L. - Não há dúvida. Lá realizei o curso primário, o
único que consegui completar. A cidade era pequena, não possuía sequer
colégios. Quem pretendesse seguir nos estudos precisava sair de São Bento.
Já no Recife, tentei voltar às salas de aula. Mase ra muito difícil, pois
eu morava sozinho e trabalhava dois expedientes para poder me manter.
Devo esclarecer, entretanto, que comecei a me interessar pela leitura
através das históriasem quadrinhos. Aos 11 anos passei a colecioná-las.
Eram revistas que não mais existem, como Globo Juvenil, com aventuras
de Brucutu e Zé Mulambo, e Gibi, além de outras mais conhecidas, como
Fantasma e Mandrake. Cheguei mesmo a fazer uma revista, toda ela escrita
e desenhada por mim, com pena comum e tinta Sardinha.
Cult - E como se deu a
transição para a leitura dos romances?
G.L. - Após alguma resistência de minha parte. Minha
mãe e minha irmã mais velha, Maria de Lourdes, viviam lendo romances,
revistas, folhetins. Em nossa casa havia vários livros, mas eu não me
interessava por aqueles volumes enormes e sem gravuras. Não trocava meus
gibis por eles. Por insistência de minha irmã, concordei em ler O conde
de Monte Cristo. Foi o bastante. Daí em diante, larguei as histórias em
quadrinhos e passei a ler romances, adquirindo, por intuição ou espírito
de imitação, o hábito de escrever.
Cult - Quando e como começou
a sua produção literária?
G.L. - Por orientação de minha irmã passei a escrever
desenfreadamente. Enviei um conto para a revista Alterosa, de Belo Horizonte,
que o publicou sem restrições. Eu tinha 17 anos e tornei-me uma celebridade
em São Bento do Una. Contudo, minha estréia em livro somente aconteceu
no Recife, com o romance Noturno sem música. Esse livro foi escrito em
1951, com minha primeira máquina de escrever, adquirida em várias prestações.
Com ele venci um concurso da Secretaria de Cultura do Estado em 1952,
embora só tenha sido publicado em 1956, numa edição particular de 500
exemplares, bancadado meu bolso. Custou-me 18 contos de réis conseguidos
por empréstimo da Caixa Econômica. Quase me lasco. O que me salvou da
falência foi o prêmio Vânia Souto Carvalho, no valorde 30 contos, também
conquistado com o Noturno...
Cult - O senhor costuma
comentar a grande influência de Osman Lins no início da sua carreira.
G.L. - Eu sempre fui bastante tímido, nunca tive muitos
amigos. Não freqüentava universidades, não conhecia colunistas de jornais,
não tinha intimidade com escritor nenhum. Desde o início me faltava coragem
para bater à porta de editora. Esperava ingenuamente por algo parecido
com o que aconteceu com Graciliano Ramos, um editor descobrindo e divulgando
meu trabalho. O Osman, fantástico novelista, contista e dramaturgo, era
mais experiente e atinado. Minha aproximação com ele sedeu por ocasião
daquele concurso da Secretaria de Educação, no qual dividimos a segunda
colocação na classificação geral. Osman, inédito em livro, mas relativamente
conhecido, sempreme orientava. Foi por incentivo dele que me inscrevi
no prêmio Orlando Dantas, patrocinado pelo Diário de Notícias, do Rio
de Janeiro, e, de certa forma, me “nacionalizei”, obtendo o primeiro lugar
com o romance Jutaí Menino. Isso foi em 1962. Em seguida veio Emissários
do diabo, de 1968, que Osman Lins, morando em São Paulo, aconselhou-me
a mandar para a Civilização Brasileira (sem citar o nome dele, pois estava
“indisposto” como Ênio Silveira). Gostaram muito do livro e logo me mandaram
o contrato de edição. Sempre achei esse processo de esperar publicação
algo torturante.
Cult - No entanto, hoje
o senhor tem seu trabalho reconhecido e um espaço assegurado, seus livros
publicados por uma das maiores editoras do país.
G.L. - Às vezes a situação em uma grande editora é bastante
complicada, pois ela tem constantemente uma fila enorme de espera. Isso
logicamente não pode o fuscar o profissionalismo da distribuição. Porém,
para dar um exemplo, estou com um livro esperando na editora desde 1998,
uma coletânea de novelas e contos, sem confirmação de que sairá este ano.
O meu livro mais recente, Morcego cego, foi enviado em 1996 e ficou dois
anos na agenda. As editoras publicam demais, lançando cerca de um livro
por dia, recebendo diariamente umas 50 novas propostas. É realmente um
processo complicado. A não ser que você seja um best-seller, escreva obras
de auto-ajuda ou coisa parecida.
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