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Coluna 25: Reminiscências de um menino de São Bento (3)
Publicada dia 11 de Fevereiro de 2006

Reminiscências de um menino de São Bento (3)

No momento em que dou prosseguimento a estas reminiscências de menino, o que me vem à mente foi o grande acontecimento cívico que mobilizou a cidade e praticamente todos os seus habitantes num ano do início da década de 1950 que infelizmente não tenho como precisar.

Pela manhã, a meninada embevecida, eu no meio, dirigiu-se à Fazenda Agra assim que os pequenos aviões, também conhecidos como teco-tecos, começaram a sobrevoar a cidade para em seguida pousarem no campo da fazenda, orientados por uma biruta que indicava a direção do vento aos aviadores para uma descida suave e segura no campo de terra batida.

Quando chegamos ao local, a alegria foi geral, pois a meninada teve a oportunidade de ver e tocar naqueles pequenos aviões, quase todos novinhos em folha, que exalavam um cheiro inesquecível de pintura recente. Os pilotos desciam e eram recebidos pela multidão, tendo a frente Waldemar Agra, ás da pequena aviação e idealizador do aeródromo. A festa estava apenas começando com o almoço sendo servido aos convidados e a quem mais aparecesse para testemunhar aquele acontecimento que punha São Bento no mapa aeronáutico do Brasil de então.

Vale lembrar que, na época, havia uma campanha desencadeada por Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, chamada “Asas para o Brasil”. A idéia da campanha era dotar o continente brasileiro de campos de aviação e incentivar a indústria da aviação menor. A campanha contaminou os espíritos progressistas da época. O certo é que a inauguração do campo de pouso deu prestígio à cidade. Tudo graças ao espírito pioneiro da nossa gente que se fez sentir mais uma vez, pois antes a cidade fora sede de um Tiro de Guerra que formava reservistas de segunda categoria e já possuía uma banda musical quase centenária.

Este primeiro estabelecimento do Exército em São Bento não é do meu tempo. Só recentemente foi que tomei conhecimento de uma foto dessa pequena unidade das forças terrestres, e que ainda sobrevive em diversas cidades do Brasil, formando cabos e soldados, reservistas de segunda categoria, e colaborando com as autoridades na manutenção da ordem em certas ocasiões. Fiz questão de citar o Tiro de Guerra 44 porque vi com meu amigo de infância e de sempre, Jaime Costa, há poucos anos, uma velha fotografia dos atiradores na qual aparecia a figura do seu pai, Arnaldo Costa. Jaime, na oportunidade, quis mostrar ao pessoal da 10ª Companhia de Engenharia de Combate, sediada no município, que nossa cidade já abrigara uma pequena unidade do Exército brasileiro, formadora de reservistas, nos já distantes anos da década de 1930. A título de curiosidade, existem em Pernambuco nove tiros de guerra, espalhados pelas cidades de Arcoverde, Vitória de Santo Antão, Pesqueira, Catende, Caruaru, Limoeiro, Nazaré da Mata, Serra Talhada e Afogados da Ingazeira.

Agora que demonstrei um pouco do pioneirismo da gente são-bentense, volto meu pensamento para a Mercearia Cadete para registrar as pessoas que lá trabalhavam. Lembro-me muito bem dos balconistas Dema Pacheco, que foi vereador, Edgar e depois Ivan Queiroz. Wanda Queiroz era a caixa do estabelecimento. Alfredo de Ana era ao que me parece o gerente. Zé Cadete, o dono, nunca o vi por trás do balcão. Ficava sempre numa espécie de escritório, quando aos sábados pagava os fornecedores de leite de sua Fábrica Castelo. Lembro-me perfeitamente de Zé Cadete, dono da Fazenda Caiana, para a qual ele ia todos os dias no seu automóvel, de cor amarela, quase sempre acompanhado pelo afilhado preferido que era Reinaldo Bodinho. Zé Cadete foi prefeito de São Bento, de 1952 a 1956, tendo nomeado Rubem Cintra como secretário da prefeitura. Não me recordo de nenhuma realização de vulto, pois era menino demais para compreender.

Oswaldo Maciel era uma finura de pessoa. Falava rápido talvez para esconder uma possível gaguez. Dizem os mais velhos que foi excelente prefeito de São Bento. Era homem de bem, figura respeitadíssima seja como político seja como comerciante. Oswaldo sabia como ninguém oferecer festas e recepções no antigo casarão da Avenida Manuel Borba.

Duas vezes por semana, o caminhão da Casa Oswaldo Maciel, dirigido com competência e zelo por Zé de Ana, meu cunhado, ia ao Recife levar queijo e manteiga para a Cadete & Irmão situada na Rua Direita. O são-bentense que quisesse mandar uma carta ou encomenda para alguém na cidade, ia ao Bar de Enedino, hoje inexistente. Esse bar era como se fosse um consulado são-bentense no Recife efervescente dos anos 1950. Era lá que Zé de Ana estacionava o caminhão, aguardando o carregamento e fazia suas refeições. Zé era uma pessoa muito bondosa. Acho que nunca cobrou passagem das pessoas que viajavam com ele para o Recife, ou da capital para São Bento. Lembro-me que na volta além de tecidos e outras mercadorias, Zé transportava quatro tonéis de 200 litros para abastecer as bombas de Zé Cadete e Oswaldo Maciel, que eram concunhados.

Voltando a Waldemar Agra, não sei se ele nasceu em São Bento. É mais provável que tenha nascido no Recife, onde a família possuía a famosa Casa Funerária Agra, imortalizada num verso do poeta paraibano Augusto dos Anjos. O que é certo é que a família Agra era proprietária da fazenda do mesmo nome. Estabelecido na cidade, o médico Lourival Agra, irmão de Waldemar, montou um bem equipado consultório que posteriormente seria o núcleo de uma prestigiosa casa de saúde. Já no início dos anos 1950, doutor Lourival já fazia, em São Bento, operação de amídalas e outras intervenções cirúrgicas de menor porte e complexidade. Realizava, por estar melhormente equipado, complicadas extrações dentárias, pois seu consultório estava mais bem aparelhado que os dos próprios dentistas. Waldemar Agra era uma pessoa simples. Uma figura magra e brevilínea. Quando vinha a São Bento era uma festa. Ele patrocinava no Bar de Jefferson a bebida e o cigarro para quem quisesse. Era a época da cerveja Brahma “Teotônia”, amarga demais e que só descia se estivesse bem gelada. Para fumar, a preferência era pela marca Colúmbia. Na época fumar era um charme, hoje uma cafonice sem tamanho, um vício hoje fora de moda. No fim, Waldemar não deixava que ninguém pagasse a conta e voltava ao Recife. Lembro-me de certa vez, no Agra, Waldemar disse que ia fazer algumas evoluções para a gente e que depois seguiria viagem para a capital. Depois de alguns “parafusos” e “loopings”, o aviador desceu e para nosso espanto foi até o bar da fazenda para tomar um trago, ou seja, um conhaque francês, pois disse que estava muito frio lá em cima e que o vôo para o Recife demoraria mais de hora.

Rendo minhas homenagens a Waldemar Agra, o homem que trouxe a aviação para São Bento. Minhas homenagens também ao médico Lourival Agra, que juntamente com Lívio Valença, exerceram, com amor e dignidade, a nobilitante tarefa de curar os enfermos. Waldemar e Lourival, cuja família proveio da Índia, tendo adotado o nome da localidade de origem como nome de família. Agra é uma cidade mais ao norte da Índia, relativamente próxima à Nova Delhi. É banhada pelo rio Yamana, tributário do Ganges, rio sagrado que desemboca no golfo de Bengala. Os dois eram típicos representantes de uma das etnias indianas onde se destacam a boa altura e a morenice da tez.

Outra figura que viveu em São Bento no meu tempo de menino foi Luiz Jacinto. Ele era o simpático e comunicativo carteiro de São Bento, envelopes nas mãos trazendo boas notícias para as moças que tinham namorados em outras cidades. Depois foi embora da cidade e mais tarde transformou-se no Coronel Ludgero e anos depois, no auge de sua bem sucedida carreira de humorista, veio a falecer em acidente aéreo no Pará.

Toda criança tem amigos. Eu me relacionava bem com muitos da mesma idade, mas meu melhor amigo dos velhos tempos foi Jaime Costa. Jaime tinha uma singularidade: era melhor amigo de muitos meus amigos. No nosso tempo, brincávamos de dinheiro usando os rótulos dos maços de cigarro: Columbia, Hollywood, Continental, Astoria, Asas, Colomy, Yolanda, Clube e tantos outros. Já praticávamos, sem saber, princípios de economia política: tinham maior valor os rótulos de cigarros mais raros como Columbia, posto que fossem poucos os fumantes da cidade que tinham poder aquisitivo para comprar uma marca de cigarro mais sofisticada. Diferente de Asas e Astoria que eram largamente consumidos pelos menos afortunados e consequentemente valiam menos como moeda de troca nas transações fictícias que realizávamos.

Outra coisa que fascinava as crianças do meu tempo eram as famosas estampas do sabonete Eucalol. As coloridas estampas eram instrutivas e traziam temas diversos como as diferentes tribos brasileiras conhecidas, as bandeiras dos estados brasileiros e de todos os países do mundo. A gente tinha que comprar a caixa com três sabonetes para termos o prazer de apreciar as estampas que tinham o formato aproximado de uma carta de jogar. Então, cada caixa de Eucalol vinha com três estampas e as duplicatas eram trocadas como outros colecionadores mirins. Os fundamentos da economia natural também funcionavam: as estampas difíceis de se encontrar valiam dez ou mais outras mais comuns.

No domingo à tarde, o programa ideal era ir para a casa de Alfredo Cintra. Íamos assistir ao jogo do campeonato carioca. Jaime e Ageu Costa e eu éramos fregueses dos jogos. Pouco antes de começar um Flamengo x Fluminense, Alfredinho Cintra ligava o rádio de bateria. Era um rádio grande que sintonizava com facilidade a Nacional do Rio, com Jorge Cury na narração. Aparelho de rádio no início dos anos 1950 era luxo. Poucos tinham o privilégio de possuí-lo. Como a eletricidade só funcionava das cinco da tarde à meia noite, os rádios eram alimentados por baterias de automóveis que eram carregadas na fraca corrente elétrica de São Bento através de um aparelho chamado “tunga”. Só depois é que os principais bares da cidade começaram a adquirir receptores de rádio para atrair a clientela que ia assistir aos jogos e programas noturnos das rádios do Rio de Janeiro. Todo possuidor de aparelho de rádio era obrigado a pagar uma taxa anual que era recolhida em favor dos Correios. Muita gente tinha rádio em casa, mas não recolhia a taxa devida ao governo federal por tamanho luxo, escondendo o aparelho do fiscal dos Correios e Telégrafos que visitava a cidade periodicamente. Coisa típica de brasileiro não ser afeito ao pagamento dos tributos estabelecidos. Muita gente escondia o aparelho de rádio para não pagar dez cruzeiros ou como era mais comum dizer: dez mil réis pela utilização das ondas sonoras.

Para encerrar estas “Reminiscências” de hoje, lembro-me de Zezé Cascão e seu bar com sinucas e bilhares onde a mocidade são-bentense se divertia jogando ou assistindo aos azes do taco em partidas memoráveis de sinuca e de bilhar. No bar de Zezé havia um reservado onde os aficionados em jogos de cartas, roletas e jaburus perdiam o seu parco dinheirinho. Isto fazia parte dos costumes numa época de pouco divertimento. Lembro-me, também, que, nas proximidades do carnaval, era costume montar barracas e levar as roletas para a praça onde os aficionados aventuravam ganhar os lança-perfumes da marca “Rodouro” para uso nos inesquecíveis bailes de carnaval do União Sport Clube. Até hoje sinto no ar o cheiro exalado por estas bisnaguinhas perfumadas que mais tarde, por desvio de finalidade, foram proibidas pelas autoridades.

São Bento do meu tempo era assim e esses acontecimentos jamais saíram do pensamento do menino que fui. São Bento e seu povo são coisas indescritíveis. Guardo pela minha cidade os sentimentos mais puros de admiração e respeito pelo seu povo bom, generoso, festeiro e acima de tudo ordeiro.

Não posso me esquecer das devastadoras secas dos anos 1950 e quando ao sinal das primeiras chuvas Ênio Mota logo organizava um baile no União para que pudéssemos celebrar aquela dádiva da natureza ao tempo em que a meninada, em regozijo, tomava banho de chuva nas ruas.

A cidade de São Bento está guardada do meu coração para sempre, até o meu derradeiro alento.





Pau Amarelo PE 11 de fevereiro de 2006

Orlando Calado é bacharel em direito.


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Coluna 111 - 08/12/2007 - Fatos & gente são-bentenses de épocas diversas (33)
Coluna 110 - 01/12/2007 - Fatos & gente são-bentenses de épocas diversas (32)
Coluna 109 - 24/11/2007 - Fatos & gente são-bentenses de épocas diversas (31)
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Coluna 77 - 14/04/2007 - Fatos & gente são-bentenses das décadas de 1930 e 1940
Coluna 76 - 07/04/2007 - Uma breve visita à nossa querida São Bento do Una
Coluna 75 - 31/03/2007 - Planejamento familiar no Brasil: uma necessidade inadiável
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Coluna 67 - 03/02/2007 - A declaração universal dos direitos humanos
Coluna 66 - 27/01/2007 - A revolta da chibata
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Coluna 64 - 13/01/2007 - Apolônio Sales, um estadista de grande valor
Coluna 63 - 06/01/2007 - 2006: Um ano de saldo positivo apesar do pouco crescimento econômico
Coluna 62 - 30/12/2006 - A "Batalha da Borracha", um episódio esquecido da história do Brasil
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Coluna 60 - 16/12/2006 - Alguns suicidas famosos (1/2)
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Coluna 32 - 01/04/2006 - Brasil, nova potência petrolífera mundial!
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Coluna 29 - 11/03/2006 - Os livros de Sebastião Cintra
Coluna 28 - 04/03/2006 - Um sábado sangrento no Recife
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Coluna 19 - 31/12/2005 - Josué Severino, o mestre e a Banda Santa Cecília
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Coluna 16 - 10/12/2005 - Do Estado pouco ou nada espero
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Coluna 11 - 13/11/2005 - A saga de Delmiro Gouveia
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Coluna 9 - 31/10/2005 - O projeto São Francisco
Coluna 8 - 24/10/2005 - Correio eletrônico, maravilha do nosso tempo
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Coluna 6 - 09/10/2005 - O Grande Pronome 'Lhe' Morreu!
Coluna 5 - 29/09/2005 - Brasil 2005 - Uma Economia Mais Forte
Coluna 4 - 22/09/2005 - As Vestais da Moralidade Pública
Coluna 3 - 15/09/2005 - Mordomia & Nepotismo
Coluna 2 - 07/09/2005 - Tratamento de Excelência
Coluna 1 - 07/08/2005 - Hiroshima - uma covardia inominável


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